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16 junho 2011

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Tem um livro na prateleira? E acha que o mundo já esperou demasiado tempo por conhecê-lo? Sacuda-lhe o pó e envie-no-lo.

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13 junho 2011

O Mar de Fernando Pessoa

Em homenagem a Fernando Pessoa pelo seu 123º aniversário

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
 
Fernando Pessoa, in Mensagem

Amanhecer

(Devaneios de uma mulher solitária)

O sol nasceu.
Vi-o espreitar pela janela do meu quarto.
Foi-se libertando aos poucos das brumas da noite.
Lentamente. Em farrapos cinzentos que sobem em espiral.

Tudo começa a tomar forma.
 As árvores.
As casas.
As sombras
E o campo de milho suspira baixinho.

De repente.  Num gesto de ternura.
Tudo brilha laranja na minha alma.
Sofrida.

Nunca me senti tão só.
Tão vazia.
Tão perdida.
Tão cansada.
Nunca um amanhecer foi tão dorido.

E no silêncio do meu quarto
(enquanto um coro de pássaros me dá os bons dias).
Penso em ti.
Na força que emanas.  
Nas palavras que me sussurras ao telefone.
Nos momentos em que estivemos juntos.
Quando éramos descontraídos.
Quando os dias eram brancos e os sonhos azuis.

Lembras-te?
De mãos dadas. Os dois.
Entrelaçados em ilusões
Em promessas.
Sussurradas na calada na noite  
Em quimeras de prazer
Que se desvaneceram esfarrapadas
Como a neblina da aurora.

Estremeço.
Será que o sol ainda brilha lá fora?

Afasto a cortina.
E espreito a manhã.  
O mundo inteiro grita em tons de verde e ouro.
Numa orgia de beleza e cor.
Que me seduz num gesto gracioso
Mas a minha alma está demasiado enfadada.
E temo em participar na festa 
Que o sol me convida.

Fecho os olhos. 
Recordo outros amanheceres.
Quando acordava enlaçada a ti.
Ou a outro alguém.
Apaixonada.
Embriagada.
Pensando que ia ser sempre assim.
Acordando devagarinho nos braços do Amor.

Ou então 
Quando dava os bons dias no topo do mundo.  
Quando o sol me engrandecia 
E pensava que o mundo era meu.
Senhora do meu do destino.
Rainha dos meus desejos.
Outros tempos.
Outras vidas.

Não quero pensar mais.

Abro os olhos.
O sol inunda o meu quarto.
Convida-me a sair.
Mas sinto-me esgotada.
Deixo-me embalar pelos sons.
O vento.
O milho.
O sino.
O galo.
Suspiro.

Fecho mais uma vez os olhos.
Buscando forças para enfrentar mais um dia.
Sei que ainda acreditas em mim.
Vou tentar.
Prometo.

Amanhã…
Será apenas mais outro Amanhecer!

@esmeralda (Agosto 2004)

Tributo a Fernando Pessoa

Flores no campo, de Roberto Pimenta (retirada daqui)


Sou um guardador de rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro


Porque hoje somam-se 123 anos desde o nascimento do inigualável e genial Fernando Pessoa, partilho um dos poemas que mais gosto, de um dos seus heterónimos - Alberto Caeiro, porque acredito que é nas pequenas coisas da vida que podemos beber felicidade - um sorriso, uma tarde de sol, uma música, um abraço, a companhia de um amigo... Por vezes é quanto basta para nos sentirmos em plena comunhão com o [nosso] mundo.

11 junho 2011

A escrita chama por nós...

Escrever na areia, de Vera (retirada daqui)


«Havia um livro imaginário com páginas que latejavam ao ritmo da sua própria angústia. As palavras eram soletradas a uma distância que me impossibilitava de as repetir, e muito menos escrever. Corri pela rua fora. Cheguei ao paredão da rocha. Voltei-me. De braços na horizontal, em paralelo com o horizonte, fixei o olhar para além das pequeninas montanhas que se elevavam por detrás da mancha esbranquiçada do casario. Olhei o moinho. Sorri-lhe. Minha testemunha de insossego. Companheiro fiel de noites em que naveguei à deriva. De respiração contida, pus-me à escuta. Reconheci, afinal, que as palavras eram a voz que, há séculos, me perseguia como sombra, misto de agonia e ternura. Tentei, a medo, iniciar um diálogo que foi interrompido logo que a primeira sílaba da minha boca se despediu, no ar. Foi a voz que falou primeiro:

- Não sabes como iniciar esta estória, não?

Tal pergunta era exactamente a que eu esperava. Como rafeiro envergonhado, refugiei-me no gesto de desenhar pequenos círculos com o meu pé descalço no chão de areia solta e juncado de palha. A voz pareceu-me sorrir. E ordenou-me:

- Escreve, já que o teu tempo foge como as nuvens sopradas pelo vento. Escreve!»

José Francisco Costa (in Mar e Tudo, 1998)