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24 outubro 2010

Exercício 1: O Junco

Pediram-me para tocar e toquei. O polido quente contrasta com a superfície fria do marfim. Faz lembrar um pedaço de madeira a flutuar num mar de leite. O cheiro velho recorda países antigos, exóticos. As arestas pontiagudas do mastro são como as agulhas do tempo.

Brinco com ele nos meus dedos. Tão pequeno. Tão delicado. Certamente obra de algum mestre com mãos viajantes. Fecho os olhos e sinto. Os aromas, os sabores, os ruídos dos mercados asiáticos. Suspiro. Continuo a navegar no tempo e no meu pensamento. Respiro a brisa dos portos distantes. Escuto o canto de sereia dos marinheiros. Saboreio o sal nas velas gastas pelos ventos. Então peço: “Leva-me para longe. Mais a Oriente!”

E foi assim. Remando no meu mar de recordações, numa miniatura de marfim, que fui parar a um pequeno porto encaixado na costa do sul da China chamado Macau.

Quando lá cheguei tinha 14 anos (quase 15). Macau não passava de um lugar distante que a minha mãe falava nos serões da minha infância portuguesa. E agora estava ali. Presente não só na minha mente como também no meu físico. Tão dolorosamente próximo. Com todos os sabores e cores do Oriente. Ofuscando a minha ingenuidade de menina-mulher.

Pois é, ali estava eu. Na terra onde nasci, na terra que me tinha dado os olhos em bico, a avó chinesa, e os sonhos povoados de budas barrigudos e dragões embutidos em arcas de cânfora. Agora só me restava aceitar. O barco já tinha partido e eu tinha ficado em terra. E Macau estava ali, à minha frente, à minha espera. Dei um passo. Devagarinho. E entrei no turbilhão euro-asiático que me iria envolver nos próximos oito anos (e o resto da minha vida).

O junco fazia parte desse turbilhão. Vi-o pela primeira vez da janela do meu quarto. Parado ali nas águas quietas e castanhas do rio Pérola. Não fazia a mínima ideia do que estava ali a fazer. Mas na minha ingenuidade de recém-chegada também ainda não sabia muito bem o que era um junco. Ouvi um ruído cansado de chinelos a arrastar no chão. Virei-me. A minha empregada Maria entrava no meu quarto com um monte de toalhas nos braços.

- Maria, que barco é aquele? Perguntei apontado para a janela.

Maria, que era chinesa mas filha adoptiva de um casal macaense, respondeu-me naquele “chinoportuguês” castiço que tinha aprendido por casa:

- Tai-siu-ché (que queria dizer filha mais velha em cantonês) é um junco-áh.

- E o que é um junco-áh?

- Ai- Tai-siu-ché!! Então não sabela que junco é baco-áh!

- Queres dizer que o junco é um barco?

- Ay-lá! Junco sê baco. China usá junco pa apanhar peixe. Peixe muito bom. China viver no junco. Tudo viver no junco.

- Como é Maria? China? Queres dizer os Chineses? Ah, está bem. Então eles vivem nos juncos? É isso?

- Ay-lá! China viver no junco. Comer no junco. Pescar no junco. Dormila no junco. Até cão e galinha viver no junco.

- Como? Fazem tudo no junco? Até têm cães e galinhas no junco? Que giro! – Respondo toda contente - Mas diz lá Maria, o que é que está o junco ali a fazer? – E apontei para a janela.

Maria olha-me como se eu não regulasse muito bem. Abana a cabeça. Solta dois ou três “Ai-yás” e responde:

- Junco ir muito longe e voltar com peixe. Muito taifoon. Muito peligroso. Muito china molir. Ai-! Muito mau. Má sorte. Agola junco descansá. E China pedir muita sorte e peixe à A-Má (que é a deusa protectora dos pescadores chineses).

Vira-se. Abana a cabeça outra vez. Suspira. Resmunga mais um ou dois “Ai-yás” e diz ainda:

- Tai-siu-ché! Hoje almoço muito bom. Tu gostar muito. Hoje comer português cozido.

Franzi os olhos num grande ponto de interrogação. Mas ela já ia chinelando até à cozinha para remexer nas panelas onde fumegava um cozido-à-portuguesa.

E eu ali fiquei. Especada na janela. Olhando para o junco parado no horizonte. Pensando nos pescadores chineses. Nas suas famílias. Nos seus destinos. Nos tufões que tinham enfrentado. Na pesca nos mares amarelos da China. Nos seus cães, nas suas galinhas, e até no “português cozido” que ia almoçar.

4 comentários:

Lobo das Estepes disse...

Já comentei este texto por e-mail.

Adorei o "ela já ia chinelando" e o "português cozido"! :D

CIGANA disse...

O "o português cozido" é giro não é?

Ela dizia seempre coisas tão castiças!!

lenor disse...

eu sei a solução do enigma: cozido à portuguesa

Lobo das Estepes disse...

eu sei a solução do enigma: cozido à portuguesa

sei não, eles práqueles lados comem cão e sei lá mais o quê... não me admira nada que tenham comido aguns dos nossos navegadores...

esta coisa do "canibalismo" faz-me lembrar o meu texto "Pedido a Yemanjá" [PUB]