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11 janeiro 2011

I N F E R N O

ou...

O que sentes quando a noite cai e o sono não vem?



Neste espaço exíguo, movo-me com a dificuldade de um rato exilado no mais recôndito e imundo emaranhado de túneis. Estes canais — com cheiro a putrefacção, manchados de vómito e cravejados de insectos — não são subterrâneos, escavados por animais que vivem à noite. São passadiços metálicos, cujas paredes são contentores construídos pelo homem com a função única de albergarem o que a sociedade quer o mais longe possível dos seus lares e, se possível, esquecer. O calor intenso, que torna o cheiro insuportável, penetra a jorros pelas fendas estreitas e viscosas que me permitem ter uma parca noção do espaço circundante: lixo — toneladas de desperdício humano.

Eis o meu cárcere: um gigantesco labirinto de contentores maciços que escondem a porcaria que ninguém quer. Condenado a ruminar em solidão os meus pensamentos abjectos, sinto-me, por vezes, tentado a empurrar um contentor e evadir-me. Sei que teria forças para movê-lo, mas... terei a coragem — ou mesmo a vontade — para regressar à torrente de asséptica humanidade?

Este lugar, por muito repugnante que seja, conhece-me, aceita-me. Nas suas tortuosas entranhas, encontro sempre onde me esconder, quando ouço algum dos camiões aproximar-se para se livrar da carga sórdida; há múltiplos recantos ao abrigo do sol escaldante do meio-dia, ou do vento gélido que sopra nas noites invernosas. Sei onde passa um rego de água escura onde, às vezes, para além de algum bicho boiando na superfície gordurosa, encontro pequenas bolas de sabão e espuma perfumada que me fazem lembrar as minhas brincadeiras de infância, nos regatos ladeados de ervas, funcho e margaridas, junto do grande tanque de pedra, da aldeia, onde a minha mãe lavava a roupa com sabão Clarim.

Sei, em cada altura do ano, onde encontrar todo o tipo de répteis rechonchudos e as mais variadas aglomerações de insectos: dos crocantes ao agridoces, dos completamente negros aos transparentes e delicados como filigrana. Conheço de cor os locais com maior probabilidade de encontrar uma ave acabada de tombar — por doença, idade, ou tédio. Não raramente, do cimo dos três metros de altura dos contentores, caem objectos com algum interesse lúdico, ou perfumados com algum cheiro sintético que eu já havia esquecido.

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3 comentários:

Edera de Diana disse...

o confronto da desilusão onde a percepção de uma criança percebe a ponte da fantasia para o mundo de mudança adulta. o impacto da força da luta de ter forças para crescer enfrentando a prisão da solidão.

Edera de Diana disse...

o personagem prefere caminhar na estrada conhecida de há longo tempo, do que conhecer novos territorios... apesar de nos seus sonhos se fascinar e desenhar a aventura da descoberta o medo provocado por uma retração existente ao incerto, assusta-o.

FÁTIMA PAIS disse...

Fantásticos rodopios da pena do Lobo. Em duas penadas limpas o cenário de pesadelo com a água verdadeira do tanque de pedra!