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17 janeiro 2011

A Menina que Tinha Medo de Voar

O voo atrasou outra vez. Os passageiros impacientes aglomeravam-se juntos ao balcão da companhia aérea. Já era a segunda vez naquele dia que os voos para Londres eram adiados. Condições climatéricas - diziam. Fortes nevões. Gelos nas pistas. Impossibilidade de aterrar. Enfim! Resignada, Marta soltou um suspiro e procurou um lugar para passar as próximas horas.

Eram 3 da manhã e tudo o que ela queria era estender as pernas cansadas em qualquer lugar. Encontrou uma cadeira vazia. Arrumou as malas junto aos pés. Tirou o portátil. Abriu a garrafa de água e preparou-se para escrever. Mas não conseguia. Gargalhadas infantis perturbavam a sua concentração.

Levantou os olhos do ecrã. Sentada na cadeira da frente uma menina negra não parava de tagarelar. E ria! Ria alto. Com gargalhadas cristalinas que feriam os ouvidos. Não devia ter mais de oito anos. Vestia uns jeans justos enfiados numas botas Hello Kitty e uma camisola cor-de-rosa. Tinha dois totós escuros e arrebitados, coloridos por dois ganchos, igualmente Hello Kitty e cor-de-rosa. Os olhos castanhos, grandes, brilhavam visivelmente excitados. Nas faces morenas.

Marta fechou o portátil e olhou para a menina que… ora ria. Ora falava. Ora escorregava do assento. Ora fazia uma espécie de dança na ponta das botinhas Hello Kitty. Que irritante! Pensou Marta aborrecida. Queria escrever e  a  menina dos totós Hello Kity não deixava. E porque é que será que a mãe não lhe chamava à atenção? Resmungou Marta. Sim, porque devia ter mãe, não? E olhou com um ar enfadado para a mulher de calças pretas e blusa colorida sentada no outro lado. Perto da menina. Mas seu olhar foi ignorado. A mulher lia pacatamente um livro. Indiferente aos gritinhos excitados da menina.

Cansada. Irritada. Marta guardou o portátil e cruzou as pernas num gesto impaciente. Não era hoje que ia escrever. Não com a Hello Kitty aos saltos e pulos como um macaquinho das pilhas Eveready.  Aborrecida, levantou-se e foi deitar fora a garrafa de água, vazia. Tropeçou com uma hospedeira, apressada. Realmente hoje não é mesmo o meu dia. Pensou Marta com um cerrar de dentes.

Desculpe. Escusou-se a rapariga de farda.
Não faz mal. Respondeu Marta, tentando ser gentil. Lançou um olhar furioso ao ecrã do aeroporto. Faltava ainda 2 horas para o avião partir. Se é que iria partir. Suspirou outra vez. Comprou outra garrafa de água e voltou ao assento.

Sentou-se, e puxou de um livro. Espero que a miúda me deixe ao menos ler. Pensou Marta. A miúda? Nem um som. Nem uma gargalhada. Marta sobressaltou-se estranhando o silêncio. Será que se calou finalmente?

Olhou á volta. E vê a hospedeira apressada sentada ao lado da Hello Kitty que… já não saltava, nem tagarelava, nem dançava, nem gargalhava. Limitava-se a estar sentada, muito direita, muito quietinha, ao lado da rapariga fardada que lhe segurava a mão.

O altifalante soou. Chamando os passageiros para embarcarem em várias línguas. A hospedeira levantou-se. Segredou algo á menina que se levantou também. Hirta. Com o olhar cheio de medo, deixou-se levar pela mão estranha. Rumo ao desconhecido, naquela sua primeira viagem.

Marta viu-as desaparecerem no interior do terminal. Olhou para o relógio. Eram 5 da manhã. Ainda faltava uma hora. Tirou outra vez o portátil para fora. E preparou-se, mais uma vez, para escrever.

@esmeralda - exercicio de EC
Janeiro 2011

8 comentários:

J.T.Parreira disse...

Um modo interessante de falar sobre o medo, escondendo-o em toda a narrativa. Gostei.

CIGANA disse...

Obrigado João :)

Lobo das Estepes disse...

a forma como o medo é apresentado é subtil. quase me escapa. o mal foi ter lido o comentário antes do texto... perdi o efeito final, mas acho que está bem.

e uma menina de 8 anos pode ficar assim, sozinha, na sala de espera? é um detalhe...

achei curiosa a forma como o texto é apresentado. choca com o que estou habituado a ver, mas não deixa de ser um estilo interessante. exige mai s atenção e mestria, tanto de quem escreve como de quem lê (e sobrecarregar assim o leitor deve ser um risco assumido).

umas falhas que deem ser corrijidas, e fica um texto giro. quase que enigmático, no seu final.

CIGANA disse...

Obrigado Pedro.

Admito que pensei muito antes de escrever este texto. Tinha começado a parte do airoporto na aula mas parado na parte da descrição da criança. Lembrei-me da descrição da Florbela. Da menina que viajava pela 1a vez para ser adpotada. E pensei não na rapariga das compras, nem no homem com ar de gangster, mas sim numa viajante normal (como vi em vários aeroportos) que andam com o portátil às costas (eu por exemplo LOL). Daí surgiu esta narrativa.

É assim. A menina não está na realidade sózinha na sala de espera. Em nenhum momento eu digo isso no texto. Na realidade, se leres melhor, ela está ao cuidado da senhora de calças pretas e blusa colorida, que como não é mãe dela lê 1 livro calmamente e é por isso que a miuda é tão traquina. É deixada temporáriamente pela hospedeira aos cuidados da senhora. Quando a hospedeira volta e fica com a miuda é quando ela (miuda) se apercebe da realidade e fica com medo. As crianças são assim mesmo. destraem-se com outras coisas até ao momento que são apresentadas com a realidade. Aí demonstram francamente as suas emoções. Por isso é que o medo ficou para o fim..

Eu gosto muito deste estilo de escrita. Curto. Visiual. Quase como que o desenrolar de um filme. Não é muito convecional, eu sei. Em especial no que se respeita à pontuação. Mas eu gosto mais assim. Sem frases longas e cansativas. Sem virgulas. Apenas com pausas, quase como que os frames de um filme, onde passas de uma cena para a outra, muitas vezes com um momento negro, de pausa.

Se calhar exige mais atenção do leitor,ou se calhar não. Depende como se lê, acho. Depende como se visualiza a cena á medida que se vai lendo :)

Enfim, mas é para isso que estamos a tirar este curso não é? Para tentarmos descobrir aonde nos encaixamos, e qual é que é o nosso tipo de escrita.

Venham as falhas Pedrinho. Para corrigir o texto ainda a tempo para o Portefolio :))

Pinky disse...

Acho que se queres manter o teu estilo- go for it...penso que a pontuação é muito importante num texto...a mim diz-me muito quando leio e sinto que está tudo bem, no sítio certo, palavras e pontuação...mesmo que não esteja perfeito...é o melhor que se conseguiu naquele momento... acho só que os ou...no início de frases ficam estranhos...mas se queres arriscar um novo estilo..força...

Lobo das Estepes disse...

fartei-me de escrever reparos a este texto, e no fim pum! não aparece nada... merda! eh pá, nao tenno paciência para escrever tudo de novo :(( sorry

CIGANA disse...

Pelos vistos o texto está cheio de "reparos" invisiveis LOL. Deixa lá Pedro... Quando tiveres tempo (e paciência) volta ao texto. Que é o que eu vou fazer, eventualmente, com tudo o que escreveo e mudar tudo outra vez :))


Ana, não tenho frases aqui que começa com OU, mas sim com ORA. Se calhar achas estranho, mas isso é simples, pode-se tirar o ponto e por a virgula.. o efeito é o mesmo. Dá a pausa que eu quero quando se lê.


Mas se achas que a pontuação não está bem, manda-me um email a dizer como achas que ficava melhor. E aceito sempre criticas construtivas :))

Pinky disse...

Quando terminar esta fase mais atarefada da entrega dos trabalhos..irei enviar-te o mail...e como sempre, fazer críticas construtivas...é o que faço sempre...ou pelo menos é essa a intenção:))))

Acho que vi o Ou noutro texto teu então e confundi...mas ou ou ora, tanto faz, a ideia é a mesma...já percebi qual é....

Acho mesmo que se te identificas com o estilo, deves segui-lo...porque ser escritor também passa por isso mesmo, ter ideias do que queremos e afirmá-las, ser original e único, e não imitar ninguém...e acima de tudo ser genuíno...

Kisses e bom trabalho