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Priberam » Palavra do dia

18 novembro 2010

ex.6 » diálogo

Na penumbra do corredor, à porta da sala de cinema, ele olhava o telemóvel, impaciente: o filme começara há vinte minutos. Escreveu nova SMS, que, mais uma vez, apagou sem a enviar. Ei-la que chega, galopante:
— Chegaste outra vez atrasada! O filme já começou — atirou-lhe, ríspido, apertando o telemóvel na mão.
— Eu sei, amor, desculpa. O carro avariou de novo...
Salomé encostou-se ao namorado, tentou beijá-lo, mas ele permaneceu imóvel: uma estátua de ferro, os olhos cravados nos dela, com força suficiente para os furar.
— Ai sim? E o que foi desta vez?
— Foi o TomTom, apagou-se... — respondeu, numa voz mimosa, afastando-se sem descolar o olhar do dele.
— Apagou-se?
— Sim, apagou-se, sei lá! Ficou tudo negro...
— Negro?!
— Sim, negro!
— E deitou fumo?
— Fumo, o quê? Não, estás doido?
— Cheiras a tabaco...
Salomé engoliu em seco.
— Olha, estavam a fumar, que queres?
— Estavam, quem? Na sala de espera da residencial?
— Fiquei sem saber o caminho! Passei meia hora às voltas... foi horrível!
— Às voltas? Ou às cambalhotas?
Salomé espreitou o relógio de pulso, nervosa; ele enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
— O filme, já começou? — retomou ela, num tom calmo, nitidamente fingido.
— Se já começou? Acho que há umas duas ou três semanas.
Salomé e o namorado olhavam-se, sem pestanejar:
— Ai sim?... E já sabes o final?
— Sei. Ela morre.
Salomé pressentiu que ele sabia muito mais do que aquilo que dizia; desviou o olhar para o cartaz do filme:
— Ela morre? A Júlia Roberts? — perguntou, num tom nublado.
— Não. A puta.
Virou-se para ele, ofendida:
— A puta? Mas qual puta?!
— Tu!
— Eu?! Mas estás parvo ou quê?!
Voltavam a medir forças, com o olhar. Ele pousou-lhe a mão direita no ombro:
— Aposto que não é só o cheiro do tabaco que tens impregnado na pele...
Com o polegar, afastou-lhe o colarinho da camisa, revelando-se uma marca avermelhada no pescoço. Salomé sacudiu-lhe a mão, com brusquidão. Recompôs-se; contra-atacou:
— És um manso! Que querias que fizesse?
— Queria que soubesses esperar.
— Esperar o quê? Que casássemos?
— Não! Que esperasses.
— Que esperasse?! Mas não sabes dizer outra coisa?!
— Não tenho mais nada a dizer-te.
Pegou na mão direita dela, o dedo indicador cariciou-lhe ao de leve o anel e esvoaçou.
— Amanhã recebes o telefonema; por causa da viagem. Adeus! — rematou, afastando-se em direcção à saída.
— Telefonema? Mas qual viagem?! Espera!
Salomé ainda iniciou o gesto de lhe seguir no encalço; mas, mesmo antes de pousar o pé no chão, apercebeu-se de que, no corredor sombrio, ladeado por duas filas de ínfimos pontos de luz azul, apenas o coração dela pulsava... cada vez mais ténue, cada vez mais afundado naquele abismo onde, a cada relacionamento falhado, se perdia sem que ninguém a percebesse — ou se importasse.

novembro de 2010

banda sonora » anouk - lost

1 comentário:

Edera de Diana disse...

Aqui está retrado e espelhado a relação de paixão inicial de cada casal dos dias actuais... da nova geração, onde o cor-de-rosa de um romance se esbate pelo fumo negro de uma traição escondida, mas não arrependida pelo traidor...
A degradação visivela a olho nu, da relação hoje!...